sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Dos fins de ciclos necessários

Muito bem! Eis que chegou o cd! Não direi que está oficialmente lançado, pois creio que isso mereça uma execução pública, um show. Na verdade, esse evento é que considero o próximo ciclo, que começa agora!

As caixas com cds foram entregues pela transportadora em minha casa há dois dias. Saí correndo fazer uma foto e postar, pra que todos nas redes soubessem. A assessoria de imprensa, com o release já preparado, disparou a novidade pro mailing. E hoje pela manhã recebi o primeiro contato telefônico para entrevista de um jornal. Fiquei faceiro, claro! Primeira pergunta da jornalista: Por que o cd se chama Fim de ciclo?





Tenho a impressão de que espero o tempo todo que essa pergunta seja feita! Porque concebo a passagem da vida como o cumprimento de ciclos, exatamente por isso. Preparar um projeto meticulosamente e depois executá-lo é cumprir um ciclo. Nesse sentido, a chegada "física" do cd indica o fim do ciclo.

No entanto, abrir mão de conceitos orientados à composição "comercial" para criar arte inspirada somente na identidade pessoal também é encerrar um ciclo. Entender que um trabalho, pra ser conhecido, precisa de tempo e empenho, diferentemente da crença reinante de que basta a rádio tocar pra ser famoso, igualmente é encerrar ciclo. Assumir uma atitude mais saudável perante a vida, cuidando dos hábitos alimentares, parando de fumar e bebendo menos, dormindo e acordando mais cedo, é um baita encerramento de ciclo. De todos os exemplos citados eu me recorro pra explicar o título do cd: aplicam-se a mim sem exceção!



Agora, depois de findados os ciclos, deixe-me chamar atenção pra um aspecto especial desta palavra: ciclo. Das n definições, uma diz "intervalo de tempo durante o qual se completa uma sequência de uma sucessão regularmente recorrente de eventos ou fenômenos". Em síntese, a palavra em questão pressupõe movimento. E isso torna a vida fabulosa! O movimento dá perspectivas, alimenta sonhos, indica caminhos, abre portas. O movimento impulsiona, carrega, transporta.

Encerrar um ciclo é colocar-se diante da vida, de peito aberto, na direção do novo. No caso específico do cd, inicia-se agora o ciclo do lançamento, do show, da mostra pública! Gostaria de já agora na postagem divulgar a data, que está - por alguma razão! - gravada na minha cabeça. Mas a experiência recomenda cautela. Então, enquanto promovo a venda do cd, volto-me para os bastidores do novo ciclo, que começa agora mesmo...



terça-feira, 3 de novembro de 2015

Um mero desconhecido

Um ilustre desconhecido carrega ao menos as qualidades dignas de louvor que a definição enciclopédica aufere. Ilustre é um célebre, eminente, notável. Mas - espera aí! -, "notável"? Essa palavra não remete à existência de outras pessoas que reconheçam essa notabilidade? - Claro que sim! Taí, portanto, o que no estudo das figuras de linguagem chama-se oxímoro: as palavras opostas que causam um efeito literário bacana. Essa expressão já tornou-se lugar-comum na Literatura. Porém, nenhum desconhecido pode ser ilustre, pois que não seria desconhecido. Mero pode...

Mero é um qualquer, não desimportante nem único. Exclusivo em alguns casos, mas quase casual. Mero tornou-se pejorativo: mais um. Um entre tantos. E é na dura constatação disso que vejo a chegada de Fim de ciclo. Muitos meses de preparação, entre composição, gravação de guias e confecção do projeto, mais quase um ano entre gravação propriamente dita, mixagem, masterização e prensagem. E está aí um mero cd, de um mero compositor-intérprete.

E seria trágico, se o texto findasse aqui.



Há, no entanto, todo o outro lado! Por exemplo, se por um mero acaso alguma pessoa ler esse texto e meramente usar a tecla <compartilhar>, mais pessoas verão. Talvez o desconhecido não chegue a ostentar o "ilustre" antes do nome, mas certamente não será também desconhecido.

E aquilo que pode ser chamado de "ação afirmativa" também auxiliará o processo de conhecimento do trabalho: em 2016 certamente vai haver show de lançamento da obra. Com toda circunstância que a ocasião merece, o mero quer deixar de ser, pra também encontrar seu lugar ao sol.

Primeiramente, porém, esperemos o disco. Será ainda em novembro. Falta pouco!

Tango, meu parceiro de blogagens, está ansioso pelo cd e manda abraços!!!


segunda-feira, 29 de junho de 2015

Coisas que ganhamos pelo caminho

Como o próprio título indica, essa postagem é a sequência óbvia e natural do post anterior. Naquele, perceptível na leitura, eu lamentava a saída do projeto Fim de Ciclo (FINANCIARTE - 2014) do Lissa Stallivieri; nesse, eu comemoro a entrada do violinista Carlos Zinani. Tivemos a oportunidade extremamente prazerosa de gravar três músicas com ele no último sábado. E foi o céu!


Stendhal escreveu que "um romance é como um arco do violino, a caixa que reproduz os sons é a alma do leitor". E eu fico me perguntando a todo momento onde estão os fios invisíveis que ligam os fatos cotidianos (já ponderei sobre essa questão há tempos, aqui mesmo no blog). Em suma, esse Carlos também já era, a exemplo do Lissa, amigo da época da música erudita, aqui em Caxias. Ele no violino da orquestra, eu no coral da extinta Sociedade de Cultura Musical. Numa conversa de reconhecimento, antes de partirmos pras gravações dias atrás, ele bem lembrou que costumávamos fumar juntos nas pequenas folgas dos ensaios. Depois da saída da SCM, cada um foi cuidar do que era seu, e só eventualmente nos cruzávamos. Tínhamos tudo pra não nos encontrarmos, mas por obra do Lissa (o tal nome e número de telefone no post anterior, lembras?), eis que! A foto não deixa dúvidas...


Profissional dedicado, o Carlos já esperava por meu telefonema e prontamente comprou a briga. Tirou um tempo para colocar as três faixas em partituras e gravou, para cada uma, violinos 1 e 2 e viola. Tribemdisposto, foi ao estúdio na hora exata combinada, apenas afinou os violinos e aqueceu os dedos para, a partir daí inundar nossas almas de romance, a minha, do produtor musical Verona e do técnico Duda. Passamos cinco horas gravando, mas - juro! - que não pareceu mais que duas! O fino trato com o arco nas cordas, a preocupação com o timbre, a sensibilidade na ponta dos dedos emprestaram muito - mas muito! - sentimento ao projeto. Esse é Carlos Zinani, que tenho a honra de apresentar nesse blog e com quem espero trabalhar mais e muitas vezes.


Fim de Ciclo, a rigor, é somente um disco. No meu caso, o primeiro autoral (há pessoas que tentam me dissuadir a chamá-lo Início de Ciclo). No cotidiano de quem escuta música, é apenas mais um disco. Eu tenho plena consciência disso. Mas não tem como não lembrar de algo que ocorreu em outubro de 2014, no dia em que o projeto foi aprovado: a produtora cultural, Cali Troian, fez uma postagem no Facebook alardeando, satisfeita, a notícia; eu li e fiquei muito feliz; enquanto ligava para os mais próximos para contar a boa nova, alguém comenta o post dela: Nossa! Não sei por que tanta euforia! Já fui contemplada no passado, gravei meu cd, e isso não mudou em nada minha vida... Hoje fico pensando sobre esse comentário (triste!) de quase um ano atrás e penso: esse cd ainda não foi lançado e já mudou minha vida em vários aspectos, o que será que o futuro me reserva? Não sei pelos outros, mas creio que os fatos continuam sendo ligados por fios invisíveis. Talvez tenha sido apenas um isqueiro emprestado lá na frente da SCM ou a minha disposição de gravar tantas vezes quantas fossem necessárias algum texto lá na Spaghetti: mas o fato - esse fato! - é que essa belíssima parceria se realizou. E assim a vida segue, mudando a todo instante...

sábado, 27 de junho de 2015

Coisas que perdemos no caminho...

Estava há dias pensando nesse post, e em como iria abordar blogueiramente com lucidez os revezes que às vezes se nos apresentam. Nunca fui de ficar em cima do muro, sempre preferi silenciar antes de agredir deliberadamente. Continue lendo, que vais entender...

Frequentei o mundo da música erudita de Caxias e região por um bom tempo, especialmente nos anos 90, e tenho, desde lá, alguns muito bons amigos. Um deles, exímio violinista naqueles tempos, que saiu da "arte" pra abrir uma empresa, tornou-se, além de amigo, parceiro profissional.  Já faz uns quase 15 anos que o Lissandro Stallivieri me chama pra gravar textos na Spaghetti, tarefa que executo com prazer. Além da qualidade, do profissionalismo e do bom ambiente de trabalho, sempre rolam algumas conversas agradáveis na Spa. Sempre que encontro o pessoal de lá, saio com a certeza de que a "Spaghetti é massa!" Entendeste a sacada? Hein? Hein?



Desde o início da parceria, pensava na possibilidade de, de alguma maneira, um dia, devolver os convites. "Assim que eu tiver uma possibilidade", eu viajava, "chamarei o Lissa pra fazer algo comigo!". Quando o Fim de Ciclo foi projetado, inicialmente não pensei em violinos, violas e afins. Mas quando dei uma segunda chance ao pensamento, a ideia me pareceu fabulosa. Algumas músicas ficariam ótimas com cordas. Não pensei mais: era a chance de trazer pra trabalho esse cara de quem tanto gosto. E fiz...

De cara, apenas disse no que estava pensando, e ele disse que toparia. O passo seguinte foi orçar o projeto, empreitada da qual ele participou. O momento maior nesse processo foi em outubro de 2014, quando liguei pra ele e gritei que o projeto havia sido aprovado pelo FINANCIARTE. Admito que no telefonema, contraponto a minha empolgação, senti um pontada de... incerteza(?) na resposta, mas... agora estávamos autorizados e prontos para colocar as ideias em prática.

Quando fomos gravar os violinos, em maio de 2015, tantos meses depois, a primeira sessão não ficou como queríamos. E foi suficiente para entendermos que, por mais sessões que fizéssemos - e há um limite financeiro e de tempo para tanto! -, não chegaríamos ao resultado almejado. Imediatamente entrei em atrito comigo mesmo: como eu falaria pro Lissa que não ia dar? - O cronograma, no entanto, nos exige decisões rápidas. Dei-me, então, 24 horas pra ponderar. No dia seguinte, andando de um lado para o outro de minha cozinha, com as mãos suando, liguei para ele:

- Oi, Lissa, tenho de falar contigo! 

- Diga, Guto! Eu quero ouvir de ti!, respondeu-me ele, obviamente já sabendo do que se tratava. Eu expliquei as questões de qualidade e de tempo que nos limitavam. Não havia tempo!...

E foi nesse momento, por telefone, que o homem se fez super-homem! O que eu ouvi desse cara, que já considerava amigo, vai ecoar na minha cabeça e usarei de referência todas as vezes que precisar:

- Eu já sabia, Guto! Notei ainda na gravação. Não dá pra retomar em poucos meses o que foi deixado de lado há muito tempo, por questões profissionais. Eu entendo, E CONCORDO CONTIGO! (Putz! - comentário  meu...). EU TANTO SABIA DESSA POSSIBILIDADE QUE JÁ DEIXEI UM VIOLINISTA DE STAND BY, CASO EU NÃO CONSEGUISSE FAZER AS CORDAS ADEQUADAMENTE...

Enquanto ele me passava o nome e telefone do novo violinista, que deveria substituí-lo, eu não sabia se chorava ou simplesmente rendia minhas homenagens a ele. Minha mulher, com quem eu tinha conversado intensamente nas horas anteriores a respeito, acompanhou-me durante o telefonema. Ao final, ela disse que eu me saí bem, embora eu me sentisse esgotado. Entretanto, ela também estava comigo à noite daquele mesmo dia, no momento em que li o mail definitivo que o Lissa me mandou, anexando a carta assinada de desistência do projeto, Esta foi a hora em que a ficha caiu, e me fui definitivamente às lágrimas. Ele escreveu assim:

"Assinei com uma lágrima caindo do canto do olho.

Peço desculpas pela minha incapacidade, mas eu juro que me esforcei e queria mesmo estar nessa.

Por ti, pelo Verona e por todos os outros grandes músicos. Por isso alimentei a esperança. 

Dessa vez, saio humildemente de cabeça baixa… mas é preciso saber se entregar com honra.

Continuo na torcida e espiritualmente presente no teu projeto, se tu me permite, só pelo motivo de ter acompanhado um pouco os passos dados e por ser teu amigo. E segue o baile… Toca pra frente. Vai ser um sucesso."

Não lembro ao certo, mas fiquei uma meia hora certamente chorando. Minha mulher me perguntando "o que houve?...". Era tristeza de minha parte em não conseguir ver efetivada a participação de um baita amigo no projeto. No entanto, o caráter que esse cara demonstrou no mail, no registro, foi algo um pouco mais além do que eu já sabia dele. Não lembro de ter recebido um mail igual a esse nunca...



Pra encerrar, pois já fui longe nesse post, vou dizer diretamente ao Lissandro (não tinha como ser diferente):

- Lissa, 3 coisas: 1)"Incapacidade" é uma palavra que, nós dois sabemos, não faz parte de nosso léxico. O que te ocorre é falta de tempo pra desenvolver a pegada do violino. Pra isso, vão existir mais projetos. 2) Emociona-me profundamente constatar o caráter de uma pessoa. Não acontece todo dia nem em todo lugar. É raro. Tu tens caráter e sou extremamente feliz em ser teu amigo. 3) Saíste honrosamente do projeto, mas deixaste um nome e telefone de alguém que levou tua intenção ao pé da letra. Deixaste também, no entanto, mais que teu nome: tua estirpe: sou teu admirador pra sempre!

E assim segue o Projeto Fim de Ciclo, dando-me chacoalhadas, e que ao longo desse ano vai mudando minha vida...

quinta-feira, 21 de maio de 2015

Quando o profissional se mostra...

Quando entrei na sala de gravação do Lázaro Nascimento (até há pouco confundia nomes: é Nascimento ou Ramos? - Sacumé, gente famosa...), ele via online, pelo notebook, o debate sobre a aprovação de uma lei. Creio que era a TV Senado ou uma da mesma linha. Fez-me um comentário sarcástico e bem posicionado sobre o atual andamento da política, e eu, ansioso por pela primeira vez gravar com o cara, pensei: aposto que ele ainda nem ouviu minha guia...

Fazia pouco mais de uma semana que havia mandado o esqueleto de Fim de Ciclo pra ele. Havia nesse esboço apenas meu violão dedilhado, uma bateria contida e minha voz. Mais nada! Depois de alguns minutos de conversa amena - excetuando-se o sarcasmo (super bem posicionado) em relação à política, fechou o link da tv, abriu a janela do ProTools (que já estava aberta, esperando-me) e me disse: - O que tu acha disso pra tua música?... E tocou a música inteira, praticamente sem ouvi-la novamente...

Conheci o Lázaro como a maioria de nós em Caxias o conheceu: numa noite em algum bar. Com minha mania crítica, mas bem intencionada, de analisar detalhes de cada músico. Ele acompanhava um dos irmãos Ferreti, não lembro agora se o Pietro ou o Dan, mas desde aquela vez impressionou-me a tranquilidade com que tocava seu violão. Garoto ainda, cabeludo, mas com uma segurança típica de músicos que levam anos e anos pra entender que o menos é mais, ele conseguia fazer até do silêncio um acorde. Há músicos que mesmo numa toda vida não aprendem isso. Eu mesmo ainda ando buscando compreender as grandes sacadas do silêncio...





Numa outra noite, depois de vê-lo tocar, creio que estava com um dos meus parceiros d'O Legado, convidei-o pra tomar um copo de cerveja e bater um papo. Simpático e comunicativo, revelou que aprendeu a tocar de ouvido (putz!) e que é oriundo de Venâncio Aires (cidade onde já morei e da qual trago muito boas lembranças também).

Desde então somos amigos. Não de tocar juntos, claro, mas de nos encontrarmos nas tocattas das noites: ele no instrumento, eu na plateia. Lógico que vim nutrindo a esperança de um dia realizar o sonho de tocar com um cara assim. O cd Fim de Ciclo, apoiado pelo FIANCIARTE, deu-me essa oportunidade. Na primeira chance que tive, depois do projeto aprovado, cheguei cheio de resenhas pra lhe fazer o convite. Quando ele se deu conta de que estava sendo convidado, apenas respondeu, junto com um sorriso caloroso: - Oh, irmão, demorô!



Lázaro Nascimento recebeu a incumbência de fazer guitarra-solo em Fim de Ciclo. Embora seja o nome do cd, também é o nome de uma das músicas. A partir de uma guia lenta e melancólica, ele conseguiu imprimir uma pegada soul que, tenho certeza, vai render um bocado. Essa é a participação especial desse meu especial amigo (hoje já posso chamá-lo assim).

E creio que em breve, quando me der a honra de jantar aqui em casa, poderei dizer que essa participação única é, embora especialíssima, muito pouco, e que quero dividir palco com esse cara talentosíssimo. Nessa noite, da janta qui em casa, provavelmente faremos fotos juntos. Na noite da gravação, só se falou de música. Ah, também um pouco de política e de outras coisinhas impublicáveis aqui... To orgulhoso e feliz demais com a participação do Lázaro!

Ah, ProTools é o software pra gravações profissionais, que todo bom músico usa...

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Quem ouve foles não vê essência...


Tive a oportunidade de apreciar alguma apresentação de Rafael De Boni antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. Sentado confortavelmente em algum poltrona, naquele distanciamento seguro daqueles que somente observam, avaliam e curtem o som, saí da apresentação com uma sensação contraditória, mas que já tinha observado em outros músicos que lidam com música instrumental: como pode alguém supostamente tão introvertido, tão "na sua", ter tanta expressão ao executar o instrumento? - Lógico que a resposta a esse questionamento soa como óbvia: nas teclas do acordeon e no empenho do fole (caso dele) brota a sensibilidade.

Tem-se sempre - ao menos na visão do "ouvinte"- a impressão de que um intérprete sensível também o é na sua vida, no cotidiano de suas particularidades. Mas eu não o conhecia. Nunca havia trocado sequer um buenas com ele. Então, a questão sensível-na-música-sensível-na-vida perdurava. Será que seria?

Dia desses, por alguma razão que todas as formas de explicar a vida justificam (sejam religiosas ou meramente filosóficas), tocamos junto. Foi numa fumaceira galponeira daquelas promovidas pelo Ale Balen, nosso amigo comum. Havia umas vinte pessoas por lá, metade delas já etilicamente embaladas, e daí revelou-se a já imaginada sensibilidade do ser, daquele que levava as mãos às teclas da gaita e, sem cantar, produzia aquele ar de lamento, euforia, fúria ou encantamento amoroso que as músicas exigiam. Devemos ter tocado (com parceria do Verona) não mais do que dez músicas. Mas depois de guardarmos os instrumentos, passamos a conversar. E não paramos mais até hoje...

Surgiu de supetão o homem por trás da gaita: o marido dedicado, o pai zeloso, o escoteiro comprometido, o profissional empenhado. Surgiu ali a criatura - até frágil - sensível  que eu havia identificado na execução do instrumento. E, melhor de tudo, surgia ali um amigo que ainda dá importância pras relações inesgotáveis da amizade!





Eu tinha uma ideia ancestral de gravar na linha da Música Popular Gaúcha, embora talvez nem mesmo eu soubesse como deveria ser. O De Boni logo sacou isso e, ao ser convidado (eu não tinha nem como NÃO convidá-lo), entendeu imediatamente a proposta. Já estava presente no projeto, diria de forma definitiva, antes mesmo de ser aprovado pelo FINANCIARTE. Depois da aprovação, então, e de todo o ritual de se gravar, na ordem, baterias, baixos, violões... demorou até chegar a hora, foram alguns meses. Mas, enfim, chegou. E não me surpreendi ao vê-lo no estúdio, totalmente tranquilo no acordeon, como se minhas músicas fossem também suas. Ele sabia o que fazer desde o primeiro acorde.



Rafael De Boni é uma daquelas pessoas que particularmente guardo na estante da minha vida como um ser de alma rara. Acredito que as pessoas continuarão a percebê-lo tocando seus corações, mas sem interpretá-lo como ele merece: uma criatura iluminada, capaz de transformar positivamente os lugares nos quais e as gentes com as quais se envolve.

Ele já sabe que penso assim dele. Queria apenas que os outros soubessem...

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Dom Lúcio, a História & eu

Quando Federico Nelson Giles nasceu, nos idos de mil novecentos e setenta anos atrás, a História do Rio Grande do Sul já vinha sendo escrita há séculos. Toda a querela envolvendo Bento Gonçalves e seus seguidores já há muito havia virado lenda e, buscando-se o  mito do gaúcho herói, há um bom tempo também já vinha sendo contada e cantada.

Federico nem sequer é gaúcho! Não sabia disso!

Argentino de Corrientes, pouco soube de quantos degolados Adão Latorre enviou pro lado do escuro. E enquanto ximangos e maragatos se digladiavam, talvez seus papa e mama estivessem se conhecendo. Mais tarde um tanto, mais ou menos no fim do dito holocausto imposto por Hitler, deve ter sido mais ou menos por ali, talvez como um daqueles sopros de esperança pra este Sul de mundo, é que ele veio pra luz.

Desde cedo, lá pelos 14, abraçou-se à guitarra para nunca mais largá-la. No início fez algum baile, mas pouco. Agarrou firmeza mesmo substituindo um ou outro guitarreiro que acompanhava grandes cantantes, ainda em terras platinas mais ao sul. E só aos 35 ou 36 anos (ele não lembra bem) veio para o Rio Grande.

Chegou aqui Lúcio Yanel, já de fama correntina e tupamara, ídolo de poucos por essas bandas. Mas desde que veio, às vezes com os acordes sinuosos de uma milonga e outras com o toque impressionantemente rápido dos flamencos espanhóis antepassados, ajudou a escrever a História da música do nosso rincão.

Hoje, em 2015, todos os grandes nomes do Estado já tiveram a oportunidade de estarem em sua presença e receberem a benesse de alguma inspiração sua em acordes. Nos últimos 40 anos, tornou-se cada vez mais impossível falar em música aqui sem citá-lo. Não foi por acaso que seu nome passou a ser precedido pelo indicativo de superioridade: "Dom". Nada mais justo. Um mestre merece, ainda em vida, tal título honorífico.

Conheci Dom Lúcio primeiramente de referências exaltadas dos adeptos ao Tradicionalismo, e logo depois por ouvi-lo acompanhando alguém ou em algumas incursões solo, tudo em gravações. E tornei-me mais um na multidão de seus admiradores. E sempre foi assim que o vi!

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Nos entrementes das voltas do mundo, tive a oportunidade de vê-lo ao vivo por primeira vez numa noite improvável. Faz pouco mais de um ano, aqui em Caxias. Yanel rendia seu tributo ao Xiruzinho, numa noite em que vários outros macanudos do instrumento e da voz faziam o mesmo. Noite triste, de lamento por uma partida prematura. Eu e a Márcia (minha morocha) estávamos lá, na plateia da Casa da Cultura. Ao final do evento, fomos convidados pelos organizadores a acompanharmos a ceia dos músicos: nenhum recebeu cachê, mas tinham de ser alimentados, claro!

Ao chegarmos no local, ali estava o cidadão guitarreiro. O bigodão parece conferir estatura à criatura baixinha... A Márcia, tiete de longa data, tratou logo de fazer umas selfies. Eu, de minha parte, levei um papo com o Luiz Marenco, outro baita, e resolvi manter uma distância respeitosa do ídolo. E ficou por isso...

Passaram-se meses até o dia em que, por razões que não dariam boa leitura, eu tive a oportunidade de telefonar para Dom Lúcio Yanel e convidá-lo a participar de não uma, mas duas músicas do MEU disco. E ele aceitou! Passei uma tarde inteira sem saber ao certo pra que lado olhar, creio que sorri até pra porta da geladeira!

Entre o convite e o dia da gravação, tivemos outras falas, até pessoalmente: vejam só os desígnios do destino, ele é meu vizinho de bairro... E chamou-me demais a atenção, desde a primeira conversa, seu estilo simples, despojado, absolutamente prosaico. No dia marcado, fui à sua residência, embarquei-o no carro, juntamente com sua fiel Dona Fátima, e conduzi-os à Linha 40, o estúdio do Duda. E lá tivemos umas das tardes mais marcantes da minha vida...




Dom Lúcio apreendeu a primeira das músicas, Nós, e em poucos minutos transformou-a em algo que eu não reconheci mais. Mas observe, meu caro leitor, o tempo todo me perguntando se as mudanças que ele estava propondo "ficavam boas pra mim". Depois foi ao aquário e gravou-a, somente com sua guitarra. Resumindo, eu terei a honra de cantar sobre uma base do violão interpretado por Dom Lúcio. Vou aproveitar a oportunidade: "Nós" será uma música - a única do disco - só de violão e voz!


Na foto acima, figura o Valdir Verona, que foi fundamental na "ponte" ao Yanel. Não apenas como produtor musical, mas como grande pessoa que é, reforço meu apreço ao Verona. Mas voltemos a Dom Lúcio, pois esse post é pra ele!

Na conferência de sua gravação, todos em silêncio no estúdio. Terminada a audição, ele se volta pra mim, naquele portunhol típico (há expressões que ele nunca se preocupou em aprender...): "/Êssa mússica es tuja, Guto?/". Eu, no clima dele: "/ Si, Dom Lúcio, melodia e letra!". E ele: "Pero es muy linda!"... Taquepariu! Ganhei o ano! Dom Lúcio Yanel disse que uma de minhas música é linda!!!

Depois deixamo-lo "solto das patas" numa que, conforme o Verona, tem "ares de flamenco": Moura Gitana. Dom Lúcio fez apenas duas tomadas de solo, que foram suficientes pra sabermos que havia material abundante pra uma grande participação. E deu-se assim a tarde...

Absolutamente maravilhosa!

Terminadas as gravações, tocou-me a incumbência honrosa de levar o casal de volta à sua casa. Na despedida, ele me disse que, em caso de entraves, ele voltaria ao estúdio pra gravar novamente... Esse é "Dom" Lúcio, mestre não apenas na destreza com as cordas, mas como ser humano. 

Ando louco, como vizinho, pra convidá-lo pra um churras aqui em casa. Já imaginou?