quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Nós

Bah!
Bah!
Três vezes Bah!

Essa canção foi o início do Projeto, quando eu nem sabia o que seria depois de uns meses. Escrevi na praia, numa noite tardia, depois de umas cervejas, naquele momento em que aflora aquilo tudo que um cara pensa de si e dos outros.

Essa palavra é bonita, remete à turma, amigos, coletividade. As imagens que evocam de imediato são das tais galeras que se encaixam dentro de um carro, todos sorridentes, num dia de passeio no mato ou na beira do mar. Nós... Poderia ser propaganda de refri ou de smartphones. Dá no mesmo...

Mas Nós, percebi mais tarde, dias depois, que era uma reflexão (daquelas cruéis) acerca de como essa galera que tá aí é. Queremos respostas o tempo todo, mas nem sabemos fazer perguntas... Putz, como isso pode levar a algum lugar? E vamos às missas, aos cultos, às sessões, e rezamos, rezamos, REZAMOS... pra quem? O que pedimos?

Nunca o mundo foi tão religioso, mas nunca houve tanto desencontro. Entupimos as redes sociais em compartilhamentos sobre perdão, compreensão, mas agimos ao estilo beijinho no ombro, desprezando quem discorda de nós.
Insuflamos massas pra reivindicar direitos sem ao menos sabermos em qual passeata entramos. Lemos pouco, mas temos opinião pra tudo! Desse jeito, vamos nos tornando cegos funcionais; estúpidos escondidos nas penumbras que, ao mesmo tempo em que nos escondem, tornam-nos vagos, números, quaisquer uns no meio do todo.

...

Depois de um tempo, criei coragem e toquei a música em público e, por incrível que pareça, ouvi, entre fungados chorosos, frases do tipo essa letra parece que foi escrita pra mim ou cara, é bem isso!...

Dizem que a melhor paga do músico é o reconhecimento. Foi a partir daí que comecei a compor escrevendo exatamente o que tinha na alma, sem concessões... 


NÓS    

Nós, que andamos sem saber pra onde ir,
Rezamos sem saber o que pedir,
Buscamos a razão de estar aqui.

Nós, que estamos implorando por proteção,
Estamos escondendo nossa mão,
Negamos o direito ao perdão.

Quem sabe nós paramos de pedir ajuda ao céu
E enxergamos o que tem além do véu
Que cobre nossos olhos e não nos deixa ver
Que toda a vida nos convida para ser um aprendiz
Da sina de um dia ser feliz.



Nós, que vamos apagando toda a luz,
Penamos carregando uma cruz,
Pagamos muito caro por ser cegos.

Nós, que andamos sem saber pra onde ir,
Rezamos sem saber o que pedir,
Buscamos a razão de existir.


Morocha

Desde que Davi Menezes Júnior lançou Morocha num Festival de música tradicionalista, fiquei com cismas da palavra. Por toda a pulha que veio junto e ficou depois, por bom tempo o vocábulo passou como sinônimo de mulher qualquer ou qualquer coisa assim.
Bem muitos anos mais tarde,  quando o Leonardo (do Sul) já tinha tentado livrar a coitada do pejorativo, dei-me conta de que não sabia nada sobre isso. O Davi deu nome, mas falou sobre seu próprio jeito de ser. E quando Leonardo escreveu Morocha não, respeito sim, de alguma maneira colocou os dois substantivos em rota de colisão: chamar alguém de morocha teria algo a ver com falta de respeito?
Pensei em conferir (e o fiz, até!) em possíveis letras espanholas a acepção, e realmente admito que há, no discurso da morocha latina, sempre uma ligação com um companheiro (a quem chama dueño). Entrementes, optei pelo meu conceito, relacionado às duas músicas dos gaúchos. E, logicamente, fui ver também o conceito da palavra no gauchês.
Daí me dei conta de que no RS a maioria das mulheres são morochas. Vejo-as todos os dias dirigindo carrões ou sendo frentistas, saindo pro trabalho cedinho de manhã ou vindo pra dormir na mesma hora, em saltos 14 ou rasteirinhas, caminhando nas ruas ou bebendo nos bares, rindo nas praças ou chorando em salas de espera...
Essas mestiças, filhas distantes de índios e europeus, de sangue tão forte que nas crismas guardaram o tom amorenado da pele, são o tesouro típico de um Pampa tão meu, tão nosso. 
Depois trouxe uma pra dividir os pelegos comigo e descobrir que, na lida do cotidiano, elas, além da morenez, também trouxeram a altivez do sangue índio, que estava aqui antes de mim, como se estivesse me chamando de invasor dentro de minha própria casa. Ou então da casa que eu, até aquele momento, pensava ser minha... 


Morocha   
Letra e música: Guto Agostini    

De sangue crismado e forte, filha de peles vermelhas,
Dos índios do sul e do norte com um toque europeu.
Morena de cabelos negros e com olhos de amêndoa,
Olhar muita vez perturbado daquilo que perdeu.

O tempo passado e tirano ao longo dos anos forjou essa fêmea,
Mestiça de amor e de ganas, dona de casa de alma haragana.
Menina que cedo deixou a infância
E o sonho de estância ficou pra mais tarde,
Lembrança que aperta a garganta e que arde quando pensa na vida.


Se a flores eu for compará-la, lembro uma flor de capim.
Do mato e da prenda mais rara fiz o meu jardim.
As mãos tão pequenas e ágeis le recorda viagens,
Mudanças de casa e paragens, sina que não tem fim.

Teu jeito ainda causa espanto em todos aqueles que não perceberam
Que tens uma estirpe de campo, tua pele é uma história que tantos contaram.
Morena, tua cor é meu pampa, é rumo de estrada, é caminho de ida,

Morocha querida, é pra ti esse canto...

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Fim de ciclo


Havia de ser exatamente hoje, 21 de outubro de 2014, que eu deveria escrever sobre essa composição. Fim de ciclo não é somente o nome de uma das 13 canções, mas também o nome do projeto. E hoje, depois de uma espera penosa de 3 meses - que pareceram décadas -, o projeto foi contemplado pelo Financiarte e a desejosa gravação do cd pode ser anunciada.
Ao selecionar as músicas para o trabalho, minuciosa e calculadamente elaborei a ideia do que esse momento significaria na minha vida. A expressão Fim de ciclo sempre me soou carregada de pelo menos dois sentimentos opostos: tristeza e felicidade. Talvez melancolia de um lado e expectativa de outro, pois se um ciclo se encerra é porque outro está pra começar.
Nesse sentido, o "meu" Fim de ciclo não é diferente. Exceto que há somente consciência, de um lado, da necessidade de mudança e muita expectativa da nova vida que deverá emergir dessa mudança. Em outras palavras, não se trata aqui de sentimentos opostos, mas de únicos. Um como consequência do outro, e ambos bons.
Toda criatura, em alguma ocasião, se depara com os fantasmas que vêm criando ao longo da vida. E então dispõe-se ao processo de exorcizá-los. Este é, em resumo e com alguma confissão de minha parte, um Fim de ciclo.
Estaria me apequenando em detalhes desimportantes para o leitor me aprofundando em exemplos para ilustrar essas mudanças. Além do que, compreendo que minhas assustadoras assombrações devem ser fantasminhas camaradas na visão de outros. Por isso não me revelarei mais.
A letra da canção Fim de ciclo se insere no estilo tradicional dos compositores que choram as dores da perda, Com um detalhe: se um perde numa separação, os dois perdem; os ciclos se encerram e os dois passam a viver de ilusões...



Fim de ciclo 
Música e Letra: Guto Agostini

Fica sempre a ferida e a mágoa reculuta
Da verdade que reluta em esconder-se da vida.
Ficam ecos de memória nos esteios do passado;
Mais um ciclo encerrado, mais um ponto pra história.
A sala grande da alma é feita um quarto escuro,
Onde ronda o mau agouro e não se encontra viv’alma.
E nas certezas do agora não cabem questionamentos
Nem os puros sentimentos que os levavam outrora.
Ah, mas quem sabe da verdade? – Eu não sei...
Ah, ninguém sabe a verdade... e eu não sei.

Descaminhos se alinhavam, fim de ciclo se apresenta.
Quem fica em casa lamenta, e os olhos de quem vai choram.
Ninguém sustenta na cara nenhum arrependimento,
Antes viver no tormento do que viver malacara.
E assim os dois se afastam em ritos de Deus e Diabo,
Rompendo de vez o cadeado dos elos que os uniam,
Nem mesmo tchau eles dizem, apenas seguem seus rumos,
E pros seus próprios consumos, de ilusões eles vivem.
Ah, mas quem sabe da verdade? – Eu não sei...
Ah, ninguém sabe a verdade... e eu não sei.