quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Perto das águas

A quem me pergunta sobre essa canção - Perto das águas - que encerra o cd Fim de ciclo, respondo que se trata da minha própria, particular e intransferível Satolep. Creio que deva ter sido por essa música que me tornei fã incondicional de Vitor Ramil, ainda nos 80. Quando ouvi a música pela primeira vez, além da linha melódica diferenciada e acordes + efeitos totalmente incomuns em meios gaúchos até então, o tom melancólico e totalmente carinhoso com que ele retratava seu passado em família, amigos, amor, chamou-me muito atenção.

Não tinha em mente fazer uma espécie de versão dessa música quando compus a minha. No entanto, devo admitir que segue a mesma linha. Perto das águas é pessoal e intransferível. É minha assinatura indelével no projeto todo e traz de forma cronológica (e absolutamente real) os lugares em que vivi, primeiro com a família da qual sou oriundo, depois aquela que formei por "esforço" próprio..

Sem citar as cidades, optei por referir-me aos rios ou arroios que as banham. Nesse sentido, o Taquari é uma das divisas de Lajeado; o Pulador passa em Ibirubá; o Fiúza enrosca-se em Panambi; o Castelhano mantém a umidade em Venâncio Aires; o Rio Pardinho é de Santa Cruz do Sul; e Santa Maria, putz!, lá não tem rio, mas há muitos banhados nos arredores. Caxias do Sul também não tem rio, mas fica no alto da montanha, entre o Antas e o Caí.

Fácil constatar que estou (estamos?) sempre Perto das águas...

Os nomes citados, também não farei maiores comentários, pois a própria letra explicará. É uma letra longa, que me cobrou horas de volta ao passado e me legou uma doce melancolia. Até cheguei a postar um videozinho no youtube com a primeira versão dela, quando pela primeira vez consegui interpretá-la sem ir às lágrimas. Um projeto, um cd, quando se propõe a buscar o mais profundo da alma de um compositor, constantemente leva-o ao choro. Mas um choro até certo ponto bom, de quem depura o passado, encerra um ciclo e se prepara pro futuro...

A ideia inicial de compor essa música vem da foto abaixo, feita no dia 22 de novembro de 1963. Eu tinha então só 3 meses...

Perto das águas  

A lembrança mais longa é uma foto nas barrancas do Rio Taquari
Eu cabia quase inteiro no meio das mãos de Glacy.
Não que eu lembro que estive ali, no entanto o registro é fiel:
A mãe, a criança, o rio, natureza cumprindo o papel.

Quando em novo, guri de colégio, do ladinho do rio me criei,
Descobrindo segredos, mistérios, bobagens, maldades e eis
Que chega a hora de i’mbora, de malas e cuias partir,
Seu Osmar dirigia o carro, qual seria o caminho a seguir?
Perto das águas eu existo, perto das águas.

Nunca soube se rio ou arroio que chamam o tal Pulador,
Arroio talvez por tamanho, ou rio por orgulho e amor,
Pois essas palavras ensinam e o tempo nos cobra depois,
Dividi com Marcelo a irmandade, quis a vida que fossem só dois.
Meu irmão, minha mãe e meu pai, os quatro de muda de novo,
O Fiúza não é o Uruguai, mas abraça nas curvas um povo.
E assim como um rio nunca para, a estrada nos leva além,
E bem perto do rio Castelhano fiz muitos amigos e amei.
Perto das águas eu existo, perto das águas.


O piá deu a chance pro homem já maduro de peregrinar
Que cumprindo o mapa da lenda pras origens devia voltar,
Pois havia bebido da sanga, pois havia saciado a fome,
Primavera renascem os brotos, e eu ganhei Rafael, alma e nome.
Nos banhados da Boca do Monte, Rio Pardinho que eu nunca esqueci,
Mas finquei alicerce nas pedras entre as Antas e o rio Caí
Bem no alto fiz minha choupana ajeitada e cheia de mim
Pra também abrigar Mariana, meus filhos, carinhos, meu fim.
Perto das águas eu existo, perto das águas.

A poesia que conta a história é vertente que não cabe em si,
Correnteza que aviva a memória e carrega o que eu sempre senti.
Pois sei que sou feito de barro e pra terra eu hei de voltar,
Mas que seja bem perto das águas que um dia eu vá descansar...

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Moura Gitana

Desde há muito o flamenco tem me causado deliciosas sensações auditivas, Os acordes de violão, até certo ponto simples, quando na execução de mestres, recebe sempre o ritmo energeticamente percussivo acompanhado de solos habilíssimos. Por mais simples que possam parecer, os contrapontos de palmas acentuam as levadas frenéticas, que são completas com algum tipo de percussão, geralmente com o cajón.

Outro aspecto extremamente chamativo desse tipo de música da cultura espanhola são os vocais: a voz flamenca é sempre rasgada, delirante, sofredora, amargurada, como se o/a cantante estivesse a um passo da morte arrebatadora.

Agora... no momento em que a dançarina trejeita com seus badulaques, envolve-se em seus lenço, desafia com seu leque e vibra suas castanholas, o espectador não sai imune. A entrega é tanta e a provocação é tamanha que sempre causam algo a alguém.

Arrisquei-me, há pouco tempo, em alguns passos básicos da dança. Matriculei-me, fiz aula e tal. No entanto, pra usar de um trocadilho bastante comum nos dias atuais, como dançarino de flamenco sou um excelente matador de baratas no chão. Então, como apreciador, pus-me ao que de melhor poderia  fazer nesse universo. E assim surgiu Moura Gitana.

Ademais, a patroa, cuja foto uso na divulgação dessa letra, exerce bem (muitíssimo) melhor a função de dançarina. A Cesar o que é de Cesar, ou, cada um no seu quadrado...


Moura gitana 

Em torno da fogueira, a cigana, dançando com seus lenços e seu leque,
Pertences, baluartes, badulaques, destino foi traçado pelas cartas.
É tanta dor em cada movimento, a dança é razão da tua vida,
A tua mão é que nunca foi lida, então revela para mim o teu tormento.
Baila, gitana, baila ao luar, me enlouquece,
Me transforma no fogo que te aquece.
Baila, cigana, baila ao luar, teu destino,
Me descobre pequeno, teu menino.

E os meus olhos loucos, tresnoitados, minados de uma gana abelheira
Invadindo abertos as fronteiras daquilo que tu tens como cercado.
E varando todos teus tapumes, penetrando fundo os teus segredos,
Me pego desvendando os teus medos enquanto me revelas teus perfumes.
Baila, gitana, baila ao luar, me enlouquece,
Me transforma no fogo que te aquece.
Baila, cigana, baila ao luar, teu destino,
Me descobre pequeno, teu menino.


Moura embaixatriz do negaceio, herança muito bruxa, meio fada,
De um jeito pouco cura, muito adaga, teus brincos me envolvem num rodeio.
Me quedo pealado por tus ojos carentes, haraganos e famintos,
e embriagado pelo vinho tinto entrego meus pertences e petrechos.
Baila, gitana, baila ao luar, me enlouquece,
Me transforma no fogo que te aquece.
Baila, cigana, baila ao luar, teu destino,
Me descobre pequeno, teu menino.