segunda-feira, 28 de julho de 2014

Então, a Música Popular Gaúcha (Parte 4)

Aprendi a tocar violão ainda em meados dos 1970. Queria interpretar Vento Negro, queria compor músicas assim... gaúchas ma non troppo. Mesmo que aos poucos eu tenha aprendido o significado de várias expressões tipicamente campeiras, nunca me vi identificado com o universo no qual essas palavras estavam inseridas e que, encordoadas a outras, relatavam ideias ou narravam cenas prosaicas de domas e tosquias. Em vez disso, colheitas (mas dessa atividade as músicas gauchescas basicamente não versavam...).
Morando em Ibirubá, dos 10 aos 13 anos, notei que a cidade era cercada de lavouras de soja. Bem de vez em quando eu via alguém a cavalo na rua e, sobre nós, no céu, símbolo de modernidade, um avião desses pulverizadores sobrevoando a cidade como pra anunciar que o serviço já tinha sido feito. Mas... cavalos no dia a dia?
Sou capaz de apostar que os garotos contemporâneos a mim e, tais como eu, urbanos, viam mais cavalos na tv, no Bonanza, Zorro ou Roy Rogers, do que na rua, cotidianamente. Seria mais coerente que eu, como jovem compositor, fizesse uma louvação aos cachorros e gatos, pois esses sim existiam aos montes na cidade...

Costumava perguntar ao meu pai sobre essa paradoxalidade. Como podia aquele advogado engravatado, que toda a semana ia pra capital defender alguém gostar tanto dessa música campeira? O velho ria e dizia que havia ainda mais a respeito, que eu ainda não havia prestado atenção. Falava que em suas viagens para fora do Estado, constantemente alguém o tirava pra sulino esquentado ou, como se costuma dizer por aqui, faca-na-bota. E teriam sido letras famosíssimas como mas se alguém me pisar no pala o meu revórve fala e o buchincho tá feito! que ajudaram a criar um estigma do gaúcho nas paragens além RS. O que dizer?
Em meu modo de pensar, algo não estava encaixado na maneira de representar esse sujeito nascido e criado em meio urbano. Não havia músicas que o representassem. E, pior, comecei a perceber aos poucos - com uma ponta de vergonha amedrontada - que os tradicionalistas ferrenhos tratavam o gaúcho urbano de forma pejorativa: de cola-fina ou, mais modernamente, gauchinho de apartamento... Curiosamente, falava-se muito nos meios midíáticos sobre o êxodo rural naquela época. E eu, ainda sem conseguir concluir nada de forma definitiva, pensava mas se o o meio rural é tão melhor, por que eles vêm pra cidade? Se estar nos galpões mateando ou nos campos a cavalo são exemplos de viver no paraíso, por que eles não ficam lá? - Por causa das políticas do governo, que obrigam os campesinos a migrarem para as cidades, alguém um dia me disse. Mas então a cidade passou a ser um lugar melhor que o campo, não? - É, pois é... não é bem assim... E acredito que até hoje eu não tenha encontrado uma resposta satisfatória pra essas questões. (continuará)

terça-feira, 22 de julho de 2014

Então... a Música Popular Gaúcha (Parte 3)

Acreditei que Vento Negro havia se tornado um hino gaúcho quando vi em lojas de instrumentos musicais algumas placas do tipo É proibido tocar Vento Negro e Stairway to heaven ao testar os instrumentos, porque a maioria das pessoas que buscava um violão ou uma guitarra dedilhavam essas músicas. Mas analisemos...
Sob o ponto de vista da letra e da linha melódica, Vento Negro não é uma música gaúcha. Não há nos versos qualquer referência ao RS, nem de longe. É um grito de desejo de justiça, de anseio de liberdade, poderia ser aqui ou na Ucrânia. Ou. Musicalmente, melodicamente, trata-se de um folk, estilo difundido meritoriamente por todo mundo ocidental. Ademais, numa análise mais aprofundada (que fiz mais tarde), Os Almôndegas não difundiam em suas gravações a "coisa" de ser gaúcho. À exceção de Piquete do Caveira, a banda que traria Kleiton & Kledir aos holofotes nacionais não tecia a renda do que se considera MPG.


Mas era bacana saber que esses caras, gaúchos, faziam um som fora do mainstream. Soava quase como um rock rural, ao estilo de Sá, Rodrix & Guarabira, porém com intuitos de galgar a parada nacional, de serem ouvidos no Brasil inteiro. E conseguiram. Os Almôndegas tiveram música gravada em trilha sonora de novela global. Lembram de Canção da meia-noite? Pois é... Saramandaia? - corrijam-me os noveleiros... 
Daí apareceu em novela também o Hermes Aquino, com sua Nuvem Passageira. Era gaúcho, e de gaúcha essa música não tem nada.
Peraí, então estamos falando apenas de música "feita" no RS, mas não de essência gaúcha. Era uma música feita praquele povo ao norte do Rio Mampituba? - Sim, era, pra desconsolo meu. E que, de certa forma, pela mesma razão, determinaria o fim dos artistas como ícones nacionais: eram gaúchos demais pra serem brasileiros. A meu ver, eram brasileiros demais para serem gaúchos...
Sumiu o Aquino e não se ouviu mais falar dos Almôndegas. Entrementes, pela tv viu-se uma grande sacada de alguns resgates de festivais de música autoral. Uau! Lembro do que pra mim foi o primeiro, em... 1980? Será? Lembro-me de Kleiton & Kledir (no debut como artistas solos, egressos dos Almôndegas) cantando Vira, virou.
No entanto, lembro de, no mesmo festival, ter visto/ouvido um maluco cantando uma canção absurdamente agauchada (óbvio que não venceria!), cuja letra dizia mas é kraft, mas kraft mesmo, um negócio triviolento... Pela primeira vez ouvi, num programa de abrangência nacional, uma expressão tipicamente nossa, gaúcha: tri! Era o Bebeto Alves, um uruguaianense que metia as fuças com uma música de estilo urbano gaúcho para além das fronteiras do RS. Bravo!
No ano seguinte, mesmo festival, Kleiton & Kledir estavam de volta, dessa vez com Navega, coração. Tanto essa como a música do ano anterior faziam referências ao povo português, Lisboa, navegações, Fernando Pessoa... propositalmente atingindo as grandes cidades brasileiras, de descendentes de portugueses, à beira do mar, ou seja, havia aí uma jogada de marketing. Excetuando Rio Grande (ou Pelotas, pela proximidade), as músicas não identificaram os gaúchos, a não ser pela beleza da composição e pelo fato de a dupla ser gaúcha, competindo com o restante do Brasil.
Mas no ano seguinte, 1982, os dois irmãos pelotenses literalmente "anarquizaram" o RS com uma música chamada Deu pra ti. A partir desse lançamento, para sempre o RS amaria a dupla, mesmo que a pretensão deles fosse sempre atingir o Brasil, e não apenas esse torrão sulino... (continuará)

Então... a Música Popular Gaúcha (Parte 2)

Creio que não seja exagero afirmar que, para muitos garotos e garotas da minha geração, a primeira identificação musical se dá com os Beatles. Então, era comum nas festinhas de garagem as músicas dos Fab Four serem consideradas limpa-bancos: ninguém ficava sentado. E naqueles anos de 1970, não estávamos nem aí pelo fato de a banda já ter acabado há tempos. Se para Lennon the dream is over, o nosso estava recém começando.
Lembro também de ouvir, aos gritos, os açoites de raiva dos que "defendiam a tradição", alegando que a juventude não pode se render à cultura estrangeira! Ora, por que não? - pergunto. Se a cultura musical que nos legavam até então era de línguas que não entendíamos (e nessa se inclui também a tal gaúcha campeira!), qual era o problema de gostarmos de músicas em uma língua que igualmente não nos era compreensível, mas que tinha ritmo extremamente contagiante?
Por isso se pode compreender por que o rock sempre foi visto aqui pelo Sul de um jeito meio... atravessado. Já cheguei a ouvir, em relação ao rock, que isso não é coisa de gente direita! Bem, então ouvir rock naqueles idos dos 1970 era uma forma de subverter a ordem. Nota: em pleno período da Ditadura! Eu tinha inveja dos garotos um pouco mais velhos que ostentavam melenas corajosas, vestiam jeans velhos e remendados e riam com desprezo dos pilchados. Com 10, 11 anos, ainda nem sonhava em quebrar os ditames familiares, que exigiam cabelos curtos e bem aparados e calças de tergal...
Os Beatles, bem sei, tornaram-se "porteiros" de toda uma geração, posto que abriram passagem pra uma infinidade de outras bandas chegarem aos nossos ouvidos gaúchos. O leque musical se ampliou e a partir de então muitos assumiram-se roqueiros, nunca mais dando a mínima para a música aqui do Sul.
Em 1975, com 12 anos, ouvi uma música que me chamou atenção. Tocada ao violão por um primo, apresentava acordes folk, modernos, e tinha a letra carregada de uma sensação de esperança, num linguajar simples, direto: Quem me ouve vai contar; quero lutas, guerra não; erguer bandeiras sem matar... Pensei comigo que som bacana! Quando ele terminou de tocar, perguntei de quem era. "Almôndegas", ele respondeu. Achei graça do nome inovador e divertido do conjunto. Daí ele completou: "A banda é daqui do RS"... (continuará)

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Então, a Música Popular Gaúcha... (Parte 1)

Não (dizem que não se começa texto com não, mas...) dava mais pra escapar. 
E pretendo explicar isso aos poucos por aqui. É tanto elemento, que não sei exatamente por onde começar. Então, busco o óbvio, o cronológico, a mais antiga das lembranças. 
Lajeado, RS, às margens do Rio Taquari. Eu nasci perto das águas (todos nascemos, não?). Eu nasci das águas, assim como todos... 

Minha mãe, brasileira de segunda geração, descendente de alemães. Falava-se o dialeto tipico sempre na família dela, os Ruschel, e me surpreende que essa não fosse minha língua-mãe, pois era só o que se falava lá (hoje me arrependo de não ter aproveitado a chance de aprender), e eu + meu irmão estávamos muito lá, na casa dos nossos avós.
Íamos muito também à casa de nossos avós paternos, os Agostini, mas lá não se falava tanto o dialeto. Talvez pelo fato de a minha avó ser brasileira, pelo-duro (como dizem de europeus que já vivem por aqui desde antes da imigração de italianos e alemães). Mas meu avô tinha um forte sotaque típico dos moradores das encostas apinhadas de filhos de italianos produtores de vinho, salame, queijo e todo o restante da tábua de frios.
Nasci ouvindo alemão e italiano. E português, claro.
Mas havia uma língua tão estranha quanto as já citadas, que me diziam ser a minha real identidade: de brasileiro-gaúcho. Digo estranha, porque era tão difícil quanto as demais. Mais tarde vim a saber que se tratava do linguajar campeiro, falado com mais propriedade nas localidades mais ao sul do RS, nas áreas de fronteiras do Brasil com Argentina e Uruguai.
Devo ter ouvido Canto Alegretense ainda quando era bem piá e, sem esquecer que a canção tornou-se um hino riograndense, confesso que nunca soube direito o que diziam aqueles versos: "flor de tuna, camoatim de mel campeiro, pedra moura das quebradas do Inhanduí"... Sério! Para mim, era tão difícil entender esse versos como seria entender Quel mazzolin di fiori (che vien dalla montagna) ou Die Marie und die Greet. Eu era brasileiro, gaúcho por nascimento, recebia um bombardeio de cultura alemã e italiana nos lares que frequentava, ouvia - direto - essa linguagem dita original dos gaúchos, basicamente nas músicas de rádio, via pessoas de descendência do Oriente Médio  falando nas frentes das lojinhas da rua central de Lajeado... 
E, um dia desses, dia qualquer (nem foi numa festinha de garagem), lá pelos 9 ou 10 anos, ouvi Beatles... (continuará...)