Quando Federico Nelson Giles nasceu, nos idos de mil novecentos e setenta anos atrás, a História do Rio Grande do Sul já vinha sendo escrita há séculos. Toda a querela envolvendo Bento Gonçalves e seus seguidores já há muito havia virado lenda e, buscando-se o mito do gaúcho herói, há um bom tempo também já vinha sendo contada e cantada.
Federico nem sequer é gaúcho! Não sabia disso!
Argentino de Corrientes, pouco soube de quantos degolados Adão Latorre enviou pro lado do escuro. E enquanto ximangos e maragatos se digladiavam, talvez seus papa e mama estivessem se conhecendo. Mais tarde um tanto, mais ou menos no fim do dito holocausto imposto por Hitler, deve ter sido mais ou menos por ali, talvez como um daqueles sopros de esperança pra este Sul de mundo, é que ele veio pra luz.
Desde cedo, lá pelos 14, abraçou-se à guitarra para nunca mais largá-la. No início fez algum baile, mas pouco. Agarrou firmeza mesmo substituindo um ou outro guitarreiro que acompanhava grandes cantantes, ainda em terras platinas mais ao sul. E só aos 35 ou 36 anos (ele não lembra bem) veio para o Rio Grande.
Chegou aqui Lúcio Yanel, já de fama correntina e tupamara, ídolo de poucos por essas bandas. Mas desde que veio, às vezes com os acordes sinuosos de uma milonga e outras com o toque impressionantemente rápido dos flamencos espanhóis antepassados, ajudou a escrever a História da música do nosso rincão.
Hoje, em 2015, todos os grandes nomes do Estado já tiveram a oportunidade de estarem em sua presença e receberem a benesse de alguma inspiração sua em acordes. Nos últimos 40 anos, tornou-se cada vez mais impossível falar em música aqui sem citá-lo. Não foi por acaso que seu nome passou a ser precedido pelo indicativo de superioridade: "Dom". Nada mais justo. Um mestre merece, ainda em vida, tal título honorífico.
Conheci Dom Lúcio primeiramente de referências exaltadas dos adeptos ao Tradicionalismo, e logo depois por ouvi-lo acompanhando alguém ou em algumas incursões solo, tudo em gravações. E tornei-me mais um na multidão de seus admiradores. E sempre foi assim que o vi!
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Nos entrementes das voltas do mundo, tive a oportunidade de vê-lo ao vivo por primeira vez numa noite improvável. Faz pouco mais de um ano, aqui em Caxias. Yanel rendia seu tributo ao Xiruzinho, numa noite em que vários outros macanudos do instrumento e da voz faziam o mesmo. Noite triste, de lamento por uma partida prematura. Eu e a Márcia (minha morocha) estávamos lá, na plateia da Casa da Cultura. Ao final do evento, fomos convidados pelos organizadores a acompanharmos a ceia dos músicos: nenhum recebeu cachê, mas tinham de ser alimentados, claro!
Ao chegarmos no local, ali estava o cidadão guitarreiro. O bigodão parece conferir estatura à criatura baixinha... A Márcia, tiete de longa data, tratou logo de fazer umas selfies. Eu, de minha parte, levei um papo com o Luiz Marenco, outro baita, e resolvi manter uma distância respeitosa do ídolo. E ficou por isso...
Passaram-se meses até o dia em que, por razões que não dariam boa leitura, eu tive a oportunidade de telefonar para Dom Lúcio Yanel e convidá-lo a participar de não uma, mas duas músicas do MEU disco. E ele aceitou! Passei uma tarde inteira sem saber ao certo pra que lado olhar, creio que sorri até pra porta da geladeira!
Entre o convite e o dia da gravação, tivemos outras falas, até pessoalmente: vejam só os desígnios do destino, ele é meu vizinho de bairro... E chamou-me demais a atenção, desde a primeira conversa, seu estilo simples, despojado, absolutamente prosaico. No dia marcado, fui à sua residência, embarquei-o no carro, juntamente com sua fiel Dona Fátima, e conduzi-os à Linha 40, o estúdio do Duda. E lá tivemos umas das tardes mais marcantes da minha vida...
Dom Lúcio apreendeu a primeira das músicas, Nós, e em poucos minutos transformou-a em algo que eu não reconheci mais. Mas observe, meu caro leitor, o tempo todo me perguntando se as mudanças que ele estava propondo "ficavam boas pra mim". Depois foi ao aquário e gravou-a, somente com sua guitarra. Resumindo, eu terei a honra de cantar sobre uma base do violão interpretado por Dom Lúcio. Vou aproveitar a oportunidade: "Nós" será uma música - a única do disco - só de violão e voz!
Na foto acima, figura o Valdir Verona, que foi fundamental na "ponte" ao Yanel. Não apenas como produtor musical, mas como grande pessoa que é, reforço meu apreço ao Verona. Mas voltemos a Dom Lúcio, pois esse post é pra ele!
Na conferência de sua gravação, todos em silêncio no estúdio. Terminada a audição, ele se volta pra mim, naquele portunhol típico (há expressões que ele nunca se preocupou em aprender...): "/Êssa mússica es tuja, Guto?/". Eu, no clima dele: "/ Si, Dom Lúcio, melodia e letra!". E ele: "Pero es muy linda!"... Taquepariu! Ganhei o ano! Dom Lúcio Yanel disse que uma de minhas música é linda!!!
Depois deixamo-lo "solto das patas" numa que, conforme o Verona, tem "ares de flamenco": Moura Gitana. Dom Lúcio fez apenas duas tomadas de solo, que foram suficientes pra sabermos que havia material abundante pra uma grande participação. E deu-se assim a tarde...
Absolutamente maravilhosa!
Terminadas as gravações, tocou-me a incumbência honrosa de levar o casal de volta à sua casa. Na despedida, ele me disse que, em caso de entraves, ele voltaria ao estúdio pra gravar novamente... Esse é "Dom" Lúcio, mestre não apenas na destreza com as cordas, mas como ser humano.
Ando louco, como vizinho, pra convidá-lo pra um churras aqui em casa. Já imaginou?