segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Negro João

Numa noite do inverno de 2013 tive a oportunidade de apresentar Negro João, música que eu havia composto há não muito, lá no Zarabatana. Tratava-se de uma performance num projeto bacana que há em Caxias do Sul, chamado Caiuby, encabeçado pelos bons amigos e excelentes compositores Cardo Peixoto e Le Daros, que tem uma regra única, simples e impossível de ser quebrada: só pode tocar música autoral! Excelente oportunidade, não?
Juntam-se em torno do palco pessoas (poucas, é bem verdade) que se interessam pela cena - se é que assim pode ser chamada - autoral de Caxias e trocam-se informações (poucas, é bem verdade) sobre isso de compor e conseguir apresentar as composições. Naquela noite toquei Negro João pela primeira vez em público.
Das sobras de estudo que fiz há não muito tempo, ficou-me uma pá de perguntas que insistem em não calar: quem (ou qual) é o gaúcho original, o mais primitivo? Quando os gaúchos evocam seu passado histórico, a qual História estão se referindo? Eram só os índios aqui até a invasão ibérica, então o gaúcho já existia antes dos europeus? Mas... se por um lado o cavalo vem com as embarcações e só então se dissemina no território e, por outro, é impossível entender o gaúcho primitivo sem cavalo, quem é o gaúcho a quem se referem as músicas? Isso sem levar em consideração os platinos, pois pr'aquelas bandas chamam-se gauchos, sem acento mesmo e assim pronunciado...
Fiquei imaginando uma criatura e seu cavalo (crioulo, por supuesto). Um homem de feições rudes, de poucas palavras (até porque não tinha muito com quem falar). Um ser tal que, por ser mais afeito à natureza do que às construções, poderia ser quase um selvagem (um perfeito Cambará, como genialmente sobrenomeou Veríssimo). Era mestiço, como todos os gaúchos de hoje. Tinha sangue crismado indiático e europeu. 
Mas não era negro, no sentido étnico, provindo da África. Ao menos não o meu Negro João. 
E na noite em que apresentei a composição pela primeira vez, um cara veio me dizer, na hora da saída: legal da tua parte, um branquelo, debruçar-se sobre a questão dos negros... Se ele viesse falar comigo antes, entraria nos detalhes. Diria que a gente costuma chamar de João as pessoas mais comuns. E chamar Negro João seria mais comum ainda. Até porque o destino de todos eles é quase sempre o mesmo: serem esquecidos. Mas tava na hora de ir embora, e eu apenas agradeci pelo comentário e convidei-o para vir ao Caiuby mais vezes...
Para mim, sobra dizer, o gaúcho mais primitivo não era monarca das coxilhas, não era o centauro dos pampas. É esse que represento na letra a seguir, e que faz parte do Fim de ciclo. A música é pra ser tocada como folk, com afinação D aberto. Nada a ver com Tradicionalismo...


NEGRO JOÃO    

Negro João nasceu sozinho, era João porque nasceu assim,
Do pai nem fazia ideia, nem da mãe, que um dia teve fim.
João trilhava seu destino cavalgando cada dia mais,
Tapejara como poucos, mas não tinha pra onde ir.
Nem reponte de invernada, nem o beijo de uma amada,
Não havia nada, nada que esperasse ele chegar...

Negro João seguia ventos, cruzamentos, tudo é direção.
Não rezava padres-nossos, não pedia proteção.
Tinha a lua como guia e o sol como irmão.
Só vivia a despacito, não pensava no amanhã.
Namorava com as estrelas nos pernoites de jornadas
Conversava com o reflexo de si mesmo nas aguadas.

Negro João não era nada, menos que alma penada,
Andarilho invisível de planícies e canhadas...


Quando João morreu pra sempre transformou-se em cinamão
Foi cortado feito lenha pra graveto e pra tição.
Negro João está presente, pois se fez de picumã

Que eu vejo a  cada instante nas veredas do galpão...

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