quinta-feira, 21 de maio de 2015

Quando o profissional se mostra...

Quando entrei na sala de gravação do Lázaro Nascimento (até há pouco confundia nomes: é Nascimento ou Ramos? - Sacumé, gente famosa...), ele via online, pelo notebook, o debate sobre a aprovação de uma lei. Creio que era a TV Senado ou uma da mesma linha. Fez-me um comentário sarcástico e bem posicionado sobre o atual andamento da política, e eu, ansioso por pela primeira vez gravar com o cara, pensei: aposto que ele ainda nem ouviu minha guia...

Fazia pouco mais de uma semana que havia mandado o esqueleto de Fim de Ciclo pra ele. Havia nesse esboço apenas meu violão dedilhado, uma bateria contida e minha voz. Mais nada! Depois de alguns minutos de conversa amena - excetuando-se o sarcasmo (super bem posicionado) em relação à política, fechou o link da tv, abriu a janela do ProTools (que já estava aberta, esperando-me) e me disse: - O que tu acha disso pra tua música?... E tocou a música inteira, praticamente sem ouvi-la novamente...

Conheci o Lázaro como a maioria de nós em Caxias o conheceu: numa noite em algum bar. Com minha mania crítica, mas bem intencionada, de analisar detalhes de cada músico. Ele acompanhava um dos irmãos Ferreti, não lembro agora se o Pietro ou o Dan, mas desde aquela vez impressionou-me a tranquilidade com que tocava seu violão. Garoto ainda, cabeludo, mas com uma segurança típica de músicos que levam anos e anos pra entender que o menos é mais, ele conseguia fazer até do silêncio um acorde. Há músicos que mesmo numa toda vida não aprendem isso. Eu mesmo ainda ando buscando compreender as grandes sacadas do silêncio...





Numa outra noite, depois de vê-lo tocar, creio que estava com um dos meus parceiros d'O Legado, convidei-o pra tomar um copo de cerveja e bater um papo. Simpático e comunicativo, revelou que aprendeu a tocar de ouvido (putz!) e que é oriundo de Venâncio Aires (cidade onde já morei e da qual trago muito boas lembranças também).

Desde então somos amigos. Não de tocar juntos, claro, mas de nos encontrarmos nas tocattas das noites: ele no instrumento, eu na plateia. Lógico que vim nutrindo a esperança de um dia realizar o sonho de tocar com um cara assim. O cd Fim de Ciclo, apoiado pelo FIANCIARTE, deu-me essa oportunidade. Na primeira chance que tive, depois do projeto aprovado, cheguei cheio de resenhas pra lhe fazer o convite. Quando ele se deu conta de que estava sendo convidado, apenas respondeu, junto com um sorriso caloroso: - Oh, irmão, demorô!



Lázaro Nascimento recebeu a incumbência de fazer guitarra-solo em Fim de Ciclo. Embora seja o nome do cd, também é o nome de uma das músicas. A partir de uma guia lenta e melancólica, ele conseguiu imprimir uma pegada soul que, tenho certeza, vai render um bocado. Essa é a participação especial desse meu especial amigo (hoje já posso chamá-lo assim).

E creio que em breve, quando me der a honra de jantar aqui em casa, poderei dizer que essa participação única é, embora especialíssima, muito pouco, e que quero dividir palco com esse cara talentosíssimo. Nessa noite, da janta qui em casa, provavelmente faremos fotos juntos. Na noite da gravação, só se falou de música. Ah, também um pouco de política e de outras coisinhas impublicáveis aqui... To orgulhoso e feliz demais com a participação do Lázaro!

Ah, ProTools é o software pra gravações profissionais, que todo bom músico usa...

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Quem ouve foles não vê essência...


Tive a oportunidade de apreciar alguma apresentação de Rafael De Boni antes mesmo de conhecê-lo pessoalmente. Sentado confortavelmente em algum poltrona, naquele distanciamento seguro daqueles que somente observam, avaliam e curtem o som, saí da apresentação com uma sensação contraditória, mas que já tinha observado em outros músicos que lidam com música instrumental: como pode alguém supostamente tão introvertido, tão "na sua", ter tanta expressão ao executar o instrumento? - Lógico que a resposta a esse questionamento soa como óbvia: nas teclas do acordeon e no empenho do fole (caso dele) brota a sensibilidade.

Tem-se sempre - ao menos na visão do "ouvinte"- a impressão de que um intérprete sensível também o é na sua vida, no cotidiano de suas particularidades. Mas eu não o conhecia. Nunca havia trocado sequer um buenas com ele. Então, a questão sensível-na-música-sensível-na-vida perdurava. Será que seria?

Dia desses, por alguma razão que todas as formas de explicar a vida justificam (sejam religiosas ou meramente filosóficas), tocamos junto. Foi numa fumaceira galponeira daquelas promovidas pelo Ale Balen, nosso amigo comum. Havia umas vinte pessoas por lá, metade delas já etilicamente embaladas, e daí revelou-se a já imaginada sensibilidade do ser, daquele que levava as mãos às teclas da gaita e, sem cantar, produzia aquele ar de lamento, euforia, fúria ou encantamento amoroso que as músicas exigiam. Devemos ter tocado (com parceria do Verona) não mais do que dez músicas. Mas depois de guardarmos os instrumentos, passamos a conversar. E não paramos mais até hoje...

Surgiu de supetão o homem por trás da gaita: o marido dedicado, o pai zeloso, o escoteiro comprometido, o profissional empenhado. Surgiu ali a criatura - até frágil - sensível  que eu havia identificado na execução do instrumento. E, melhor de tudo, surgia ali um amigo que ainda dá importância pras relações inesgotáveis da amizade!





Eu tinha uma ideia ancestral de gravar na linha da Música Popular Gaúcha, embora talvez nem mesmo eu soubesse como deveria ser. O De Boni logo sacou isso e, ao ser convidado (eu não tinha nem como NÃO convidá-lo), entendeu imediatamente a proposta. Já estava presente no projeto, diria de forma definitiva, antes mesmo de ser aprovado pelo FINANCIARTE. Depois da aprovação, então, e de todo o ritual de se gravar, na ordem, baterias, baixos, violões... demorou até chegar a hora, foram alguns meses. Mas, enfim, chegou. E não me surpreendi ao vê-lo no estúdio, totalmente tranquilo no acordeon, como se minhas músicas fossem também suas. Ele sabia o que fazer desde o primeiro acorde.



Rafael De Boni é uma daquelas pessoas que particularmente guardo na estante da minha vida como um ser de alma rara. Acredito que as pessoas continuarão a percebê-lo tocando seus corações, mas sem interpretá-lo como ele merece: uma criatura iluminada, capaz de transformar positivamente os lugares nos quais e as gentes com as quais se envolve.

Ele já sabe que penso assim dele. Queria apenas que os outros soubessem...

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Dom Lúcio, a História & eu

Quando Federico Nelson Giles nasceu, nos idos de mil novecentos e setenta anos atrás, a História do Rio Grande do Sul já vinha sendo escrita há séculos. Toda a querela envolvendo Bento Gonçalves e seus seguidores já há muito havia virado lenda e, buscando-se o  mito do gaúcho herói, há um bom tempo também já vinha sendo contada e cantada.

Federico nem sequer é gaúcho! Não sabia disso!

Argentino de Corrientes, pouco soube de quantos degolados Adão Latorre enviou pro lado do escuro. E enquanto ximangos e maragatos se digladiavam, talvez seus papa e mama estivessem se conhecendo. Mais tarde um tanto, mais ou menos no fim do dito holocausto imposto por Hitler, deve ter sido mais ou menos por ali, talvez como um daqueles sopros de esperança pra este Sul de mundo, é que ele veio pra luz.

Desde cedo, lá pelos 14, abraçou-se à guitarra para nunca mais largá-la. No início fez algum baile, mas pouco. Agarrou firmeza mesmo substituindo um ou outro guitarreiro que acompanhava grandes cantantes, ainda em terras platinas mais ao sul. E só aos 35 ou 36 anos (ele não lembra bem) veio para o Rio Grande.

Chegou aqui Lúcio Yanel, já de fama correntina e tupamara, ídolo de poucos por essas bandas. Mas desde que veio, às vezes com os acordes sinuosos de uma milonga e outras com o toque impressionantemente rápido dos flamencos espanhóis antepassados, ajudou a escrever a História da música do nosso rincão.

Hoje, em 2015, todos os grandes nomes do Estado já tiveram a oportunidade de estarem em sua presença e receberem a benesse de alguma inspiração sua em acordes. Nos últimos 40 anos, tornou-se cada vez mais impossível falar em música aqui sem citá-lo. Não foi por acaso que seu nome passou a ser precedido pelo indicativo de superioridade: "Dom". Nada mais justo. Um mestre merece, ainda em vida, tal título honorífico.

Conheci Dom Lúcio primeiramente de referências exaltadas dos adeptos ao Tradicionalismo, e logo depois por ouvi-lo acompanhando alguém ou em algumas incursões solo, tudo em gravações. E tornei-me mais um na multidão de seus admiradores. E sempre foi assim que o vi!

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Nos entrementes das voltas do mundo, tive a oportunidade de vê-lo ao vivo por primeira vez numa noite improvável. Faz pouco mais de um ano, aqui em Caxias. Yanel rendia seu tributo ao Xiruzinho, numa noite em que vários outros macanudos do instrumento e da voz faziam o mesmo. Noite triste, de lamento por uma partida prematura. Eu e a Márcia (minha morocha) estávamos lá, na plateia da Casa da Cultura. Ao final do evento, fomos convidados pelos organizadores a acompanharmos a ceia dos músicos: nenhum recebeu cachê, mas tinham de ser alimentados, claro!

Ao chegarmos no local, ali estava o cidadão guitarreiro. O bigodão parece conferir estatura à criatura baixinha... A Márcia, tiete de longa data, tratou logo de fazer umas selfies. Eu, de minha parte, levei um papo com o Luiz Marenco, outro baita, e resolvi manter uma distância respeitosa do ídolo. E ficou por isso...

Passaram-se meses até o dia em que, por razões que não dariam boa leitura, eu tive a oportunidade de telefonar para Dom Lúcio Yanel e convidá-lo a participar de não uma, mas duas músicas do MEU disco. E ele aceitou! Passei uma tarde inteira sem saber ao certo pra que lado olhar, creio que sorri até pra porta da geladeira!

Entre o convite e o dia da gravação, tivemos outras falas, até pessoalmente: vejam só os desígnios do destino, ele é meu vizinho de bairro... E chamou-me demais a atenção, desde a primeira conversa, seu estilo simples, despojado, absolutamente prosaico. No dia marcado, fui à sua residência, embarquei-o no carro, juntamente com sua fiel Dona Fátima, e conduzi-os à Linha 40, o estúdio do Duda. E lá tivemos umas das tardes mais marcantes da minha vida...




Dom Lúcio apreendeu a primeira das músicas, Nós, e em poucos minutos transformou-a em algo que eu não reconheci mais. Mas observe, meu caro leitor, o tempo todo me perguntando se as mudanças que ele estava propondo "ficavam boas pra mim". Depois foi ao aquário e gravou-a, somente com sua guitarra. Resumindo, eu terei a honra de cantar sobre uma base do violão interpretado por Dom Lúcio. Vou aproveitar a oportunidade: "Nós" será uma música - a única do disco - só de violão e voz!


Na foto acima, figura o Valdir Verona, que foi fundamental na "ponte" ao Yanel. Não apenas como produtor musical, mas como grande pessoa que é, reforço meu apreço ao Verona. Mas voltemos a Dom Lúcio, pois esse post é pra ele!

Na conferência de sua gravação, todos em silêncio no estúdio. Terminada a audição, ele se volta pra mim, naquele portunhol típico (há expressões que ele nunca se preocupou em aprender...): "/Êssa mússica es tuja, Guto?/". Eu, no clima dele: "/ Si, Dom Lúcio, melodia e letra!". E ele: "Pero es muy linda!"... Taquepariu! Ganhei o ano! Dom Lúcio Yanel disse que uma de minhas música é linda!!!

Depois deixamo-lo "solto das patas" numa que, conforme o Verona, tem "ares de flamenco": Moura Gitana. Dom Lúcio fez apenas duas tomadas de solo, que foram suficientes pra sabermos que havia material abundante pra uma grande participação. E deu-se assim a tarde...

Absolutamente maravilhosa!

Terminadas as gravações, tocou-me a incumbência honrosa de levar o casal de volta à sua casa. Na despedida, ele me disse que, em caso de entraves, ele voltaria ao estúdio pra gravar novamente... Esse é "Dom" Lúcio, mestre não apenas na destreza com as cordas, mas como ser humano. 

Ando louco, como vizinho, pra convidá-lo pra um churras aqui em casa. Já imaginou?