quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Morocha

Desde que Davi Menezes Júnior lançou Morocha num Festival de música tradicionalista, fiquei com cismas da palavra. Por toda a pulha que veio junto e ficou depois, por bom tempo o vocábulo passou como sinônimo de mulher qualquer ou qualquer coisa assim.
Bem muitos anos mais tarde,  quando o Leonardo (do Sul) já tinha tentado livrar a coitada do pejorativo, dei-me conta de que não sabia nada sobre isso. O Davi deu nome, mas falou sobre seu próprio jeito de ser. E quando Leonardo escreveu Morocha não, respeito sim, de alguma maneira colocou os dois substantivos em rota de colisão: chamar alguém de morocha teria algo a ver com falta de respeito?
Pensei em conferir (e o fiz, até!) em possíveis letras espanholas a acepção, e realmente admito que há, no discurso da morocha latina, sempre uma ligação com um companheiro (a quem chama dueño). Entrementes, optei pelo meu conceito, relacionado às duas músicas dos gaúchos. E, logicamente, fui ver também o conceito da palavra no gauchês.
Daí me dei conta de que no RS a maioria das mulheres são morochas. Vejo-as todos os dias dirigindo carrões ou sendo frentistas, saindo pro trabalho cedinho de manhã ou vindo pra dormir na mesma hora, em saltos 14 ou rasteirinhas, caminhando nas ruas ou bebendo nos bares, rindo nas praças ou chorando em salas de espera...
Essas mestiças, filhas distantes de índios e europeus, de sangue tão forte que nas crismas guardaram o tom amorenado da pele, são o tesouro típico de um Pampa tão meu, tão nosso. 
Depois trouxe uma pra dividir os pelegos comigo e descobrir que, na lida do cotidiano, elas, além da morenez, também trouxeram a altivez do sangue índio, que estava aqui antes de mim, como se estivesse me chamando de invasor dentro de minha própria casa. Ou então da casa que eu, até aquele momento, pensava ser minha... 


Morocha   
Letra e música: Guto Agostini    

De sangue crismado e forte, filha de peles vermelhas,
Dos índios do sul e do norte com um toque europeu.
Morena de cabelos negros e com olhos de amêndoa,
Olhar muita vez perturbado daquilo que perdeu.

O tempo passado e tirano ao longo dos anos forjou essa fêmea,
Mestiça de amor e de ganas, dona de casa de alma haragana.
Menina que cedo deixou a infância
E o sonho de estância ficou pra mais tarde,
Lembrança que aperta a garganta e que arde quando pensa na vida.


Se a flores eu for compará-la, lembro uma flor de capim.
Do mato e da prenda mais rara fiz o meu jardim.
As mãos tão pequenas e ágeis le recorda viagens,
Mudanças de casa e paragens, sina que não tem fim.

Teu jeito ainda causa espanto em todos aqueles que não perceberam
Que tens uma estirpe de campo, tua pele é uma história que tantos contaram.
Morena, tua cor é meu pampa, é rumo de estrada, é caminho de ida,

Morocha querida, é pra ti esse canto...

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